Acemira, a cidade presa em si

Era uma cidade muito engraçada

Não seguia regra, seguia nada

 “Bem vindo a Acemira (1)”

“Uma das cidades mais antigas do Brasil”

 “Uma das maiores reservas ambientais do país”

Dizia a sequência de três placas, após 1h de estrada sem sinalização. Fiquei boba de tão maravilhada com o caminho; a pista simples, vista de montanhas e morros exuberantes que, de fato, estavam ainda intactos pelo progresso.

    “Progresso?” pensei “Só se o valor da palavra estiver invertido. Pra mim, progresso é isso: poder estar em uma estrada sem achar que alguém vai passar por cima. Abrir o vidro e sentir o cheiro da mata, do ar puro. Isso é, aliás, regresso”. Costumava ter longos diálogos com meus próprios pensamentos e, nesse caso, uma paz me invadiu ao pensar na palavra regresso. A possibilidade de retornar a algo que era bom antes de ser alterado de maneira tão brusca.

Não só estar em meio a um ambiente preservado me trazia essas sensações de bem estar físico, como também ter tomado a decisão de retornar à cidade da minha família e de meus ancestrais me trazia sensação de pertencimento. Eu estava encantada.

    Passo pelas ruas e vou lendo alguns avisos a respeito de restaurantes, pousadas. Placas de ruas com referências idênticas, sobrenomes semelhantes… como qualquer cidade brasileira, segue intacto o movimento de idolatrar as mesmas pessoas a partir da mesma perspectiva o tempo todo. Algo contraditório para uma cidade com nome indígena. Lembrei da Grada Kilomba (2) falando sobre a glorificação do colonialismo. Achava engraçado quando reviravam os olhos pras coisas que eu dizia. Demorou, mas agora eu entendia que eles não sabiam estar se revirando para evitar encarar seus próprios abismos.

O calor exacerbado, cada ano mais intenso, me fez sentir vontade de tomar aquela garapa que eu pedia desde criança, nas férias de verão. A barraquinha ficava no centro histórico. Estaciono e decido ir a pé. Me deparo com algumas pessoas existindo ao longo do caminho. Fico surpresa com a intensidade de seus olhares voltados a mim. Começo a refletir se seriam eles por conta do meu cabelo curto? Seriam minhas roupas coloridas? Seriam minhas tatuagens? 

Não. Não pode ser isso. Lembro de toda a árdua caminhada que tracei para poder, rapidamente, devolver a bola a quem ela pertence. É bem óbvio, no fim. O sentimento é de quem sente. Eu estava só andando, afinal. No centro da cidade, é verdade. O mesmo centro que levava o nome da cidade, enquanto seus arredores tinham nome de bairros. Curioso funcionamento. Tradicional.

Ninguém podia viver sem sede

Porque a cidade era só parede

Em uma cidade secular, “tradição” significa anos de repetição. O orgulho das tradições desse lugar diz sobre as pessoas terem se mantido fixas, estagnadas. Sem desejo de acompanhar um mundo que já havia entendido que seu modo de funcionamento estava errado desde sua criação. Essa tranquilidade em me encarar se transforma em outro sentimento dentro de mim. Esses olhares… Seriam tristeza?

    Sou atendida e peço garapa com gelo e limão, óbvio! Enquanto aguardo, me retiro do lugar de observada me colocando no lugar de observadora. Reconheço meu tom de pele nos transeuntes: era sexta-feira e alguns já estavam com suas cervejinhas, outros sentados à sombra de guarda-sóis nos restaurantes daquele centro pitoresco. Um senhor, à minha esquerda, contava a uma senhora sobre seu vizinho “foi para São Paulo e se perdeu na vida, um horror para a família”. Ainda quieta, penso que eu adoro uma fofoca, mas sinto que, nesse lugar, é sobre fugir da sua própria vida – ou além, validar suas próprias decisões anulando o outro. Credo. Não senti saudades dessa sensação. Quero tomar minha garapa e ir logo para casa.

Sinto aquele gosto doce e azedo me refrescando de dentro pra fora. Sigo observando. Vejo os prédios construídos há 500 anos. Tão bonitos. Me lembram o centro do Rio de Janeiro e de Salvador. Também me lembram Lisboa. As mãos que construíram esses edifícios tombados não receberam nem nota de rodapé. E já se passaram séculos. A tonalidade da cor da pele de quem me entrega minha garapa diz muito sobre esses lugares dificilmente alterados. 

Lembro de um dia, nessa mesma cidade, ter ouvido que não existe gente branca no Brasil seguida da máxima: não é sobre raça, é sobre classe! (3) Certamente que não existe gente branca no Brasil ou que é sobre classe: realidade possível só no delírio das próprias pessoas brancas que dizem isso.  Já ouvi que penso demais sobre essas questões. “Você é muito radical, Raquel!”. Acho curioso como conseguem não pensar sobre, se todas as realidades que nos cercam foram construídas a partir disso. 

“A exaltação da colonização”. Lembro de novo de Grada. Acemira e sua população central tinham orgulho de seus maneirismos e manias. Contavam a plenos pulmões sobre o ciclo de café que aqui existiu e que, por um longo período, a tornava uma das principais cidades do país. Reciclagem de uma história preenchida de omissões. 

 Termino meu caldo de cana. Cana. Outro ciclo que nunca foi nomeado na história do meu país. Sigo vivendo na não nomeação social de tantas realidades que impactam as vidas cotidianamente. Lembro de me blindar dos olhares inquisitórios – era essa a palavra! – que seguem me vigiando no meu caminho de retorno. Talvez seja, na realidade, porque a ofensa deles é sobre eu conseguir ser feliz sem seguir suas tradições. Suas manias e maneirismos.

A ofensa deles talvez, entre outras, também seja porque, dia após dia, o regresso às raízes ensina o quão infeliz essa realidade é e o quão feliz ela poderia ser se se colassem à realidade. Mas se colar à realidade dói e requer mudanças. Talvez seja melhor se distrair com ofensas imaginárias mesmo. 

Não pra mim. 

Decido ir pra casa, exaurida. 

“Era pra ser leve. Era só um caldo de cana em meio à tanta natureza exuberante”. 

O que me aguarda nos próximos dias?

[continua]

“Este território, que hoje denomina-se Brasil, só recebeu este nome por ter entrado em relação com um Outro – Portugal. Partimos da concepção de Carneiro (2011) (4) ao compreender que esta relação foi pautada por constantes violências e violações dirigidas para algumas populações, e, benesses e privilégios para outras. O que possibilitou a existência dessa nação foram as segmentações baseadas no critério de raça – conceito que não encontra realidade na biologia mas que, há séculos, encontra realidade nos acontecimentos históricos e sociais (SCHWARCZ, 1993) (5).” – trecho do projeto de pesquisa “Um olhar sobre a branquitude: a psicanálise enquanto possível ferramenta para dar contorno à subjetividade de mulheres brancas”. 2022.

Referências:

  1. Tradução do Tupi-Guarani: aquilo que faz doer.
  2. Memórias da Plantação – Grada Kilomba (2019)
  3. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo – Lia Vainer Shucman (2012)
  4.  Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil – Sueli Carneiro (2011)
  5. O Espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930 – Lilia Schwarcz

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