Entre pântanos, cacos de vidro e sapatos

escrito por M. G. e capa por Alda Santiago

Tem dia que bate um desânimo que a gente custa a entender de onde vem. Não foi insônia a noite, porque nem insônia você tem. Eu, pelo menos, onde encosto, durmo. Não foi uma quantidade de trabalho absurda, porque, disciplinada e escaldada, agora você cuida da sua carga de trabalho com consciência, e desliga tudo às 18h. “Não trabalho com cirurgia de cérebro, ninguém vai morrer se eu só responder isso amanhã às 10h”. Na família também está tudo ok. Então por que tem dia que a gente sente como se tivesse sido sugada? Uma vontade de deitar e ficar quietinha, até que de alguma forma a bateria se recarregue, e a gente volte a esbanjar a alegria que nos é típica. A alegria que esperam de nós.

O problema é o jeito como estamos fazendo essa conta. A lista de to-dos não contempla intensidade. Não calculamos o quanto de nós fica nas relações. Você dá um feedback assertivo e, ao invés de debater próximos passos, fica presa no looping de justificar, compreender, sorrir e seguir o baile, porque a pessoa que recebeu o feedback contra-atacou. Mas ela não faz isso mostrando serviço. Ela faz isso questionando a sua forma, o seu timing, a sua pessoa. Porque é muita ousadia de uma mulher negra dizer ao branco que ele está errado. Quem eu penso que eu sou para avaliar a competência de quem a competência está dada? Como eu não vejo que é apenas uma questão de dar a oportunidade certa, no momento certo? Como não considero que ela está dando o melhor de si? Como posso ter tamanha insensibilidade? Como uma Diretora de Pessoas e Cultura não pensa na pessoa? E pronto. Cá estou num lugar onde nunca estive antes: da pessoa intolerante. Logo eu, geralmente ponderada, conciliadora, ouvinte. Será que o poder subiu à cabeça? Será que me perdi de mim?

Sigo fazendo o meu trabalho. Sigo sendo questionada. Em outra área, com outras pessoas, as mesmas cores. Sou convocada a assumir um erro que não tinha como ser meu. Precipitação. Insegurança. Medo. Quando essas relações passaram a ser assim? Quando me tornei a pessoa que passa pano e não fala a verdade. Ainda ontem, nesse mesmo lugar, o problema era a dureza e inflexão. Hoje, ao contrário, faltou compromisso. Logo eu, que sempre fui convocada para acolher. Eu, que sempre evitei que tudo desmoronasse. Ah! Mas agora não faço mais o papel de 3. Não sou analista, coordenadora e gerente. Hoje, somente diretora. Repenso os passos. Recalculo rota. Questiono e duvido das minhas decisões. Sou ética, transparente. Uma transparência que o perfil leitoso desconhece. Que essa gente encobre, ao mesmo tempo que argumenta que está tudo às claras. É tudo claro demais.

E o tal cansaço? Começo a entender de onde vem. Um cansaço socialmente construído, fruto de uma carga mental imensa. Filho desse pensar e repensar, desse caminhar novamente pelos caminhos já percorridos, pra ter certeza de que não deixei nada pra trás; desse eterno retorno, essa eterna necessidade de me explicar, mesmo quando não sou eu quem deve explicações. Essa constante necessidade de provar, apesar de a todo momento dizerem que não precisamos provar nada. E a minha história se torna a nossa história.

A gente busca estar em lugares que dizem desejar nossa presença, mas como boa psicóloga que sou, já estou careca de saber que não dá pra confiar em tudo que a consciência diz – ainda mais se ela for branca. Aprendi a confiar desconfiando. A ir com cuidado, a pisar devagar. Mesmo quando o solo parece firme, o passo seguinte pode afundar na areia movediça que você não viu, apesar das placas que você mesmo pregou pelo caminho, dizendo “cuidado, campo minado.” Talvez esse seja o problema, a gente vai sendo engolida pelo terreno pantanoso, enquanto esperávamos uma explosão. Uma bomba que não vem, porque o campo não era minado, eram cacos de vidro. E ai você se percebe descalça. Onde estavam os seus sapatos? Não há sapato. Nunca houve. Mas há cabritos calçados.

Nessa hora você lembra quem é que consegue caminhar nesse chão sem se cortar. Oxum é sua referência. E os espíritos de umbanda também. Você lembra das histórias de beber dendê fervendo para provar que existe. Qual será o azeite que vou precisar beber para provar minha existência? Ancestralidade. Essa é a sua grande aliada. Sua única arma. E nela se encerra tudo que você precisa.

Vem o recado: aquiete-se, se acalme. O que é pra ser tem muita força.

1 comment

  1. Bravissimo…como é completo e perfeito de encontro a todos os pensamentos que tive nesses dias Axe!

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