Eu sou neguinha?

Escrito por Caio Portela

“Eu era o enigma, uma interrogação”. 

Ler os versos entoados por Caetano Veloso em 1987 e perceber que ecoam até hoje, me faz pensar em como falar sobre algo que já deveria ser de conhecimento público. 

Se por um lado o mito da democracia racial, que basea-se na  mestiçagem biológica e cultural entre brancos, negros e índios, já foi desemontado pelas tintas do professor Kabê (Munanga), por outro a branquitude insiste em “se fazer de doida” para justificar o injustificável.

“Eu sou neguinha?”

Não insistirei aqui na dúvida ontológica que paira sobre a mente do poeta Caetano ao questionar a identidade racial do seu eu-lírico a partir do biotipo estereotipado da “bunda de mulata” e do “muque de peão”. 

Prefiro falar sobre a posição do filho de Dona Canô em 30 de maio de 2006 quando assinou, juntamente com alguns Wernecks, Schwarzes, Goldenbergs, Kramers, dentre outros 113 notáveis, o famigerado “Manifesto contra as cotas”. O documento intitulado “Carta pública ao Congresso Nacional – Todos têm direitos iguais na República Democrática” manifesta a contrariedade do grupo com o projeto de lei que instituiu a política de cotas nas universidades federais e o que criou o Estatuto da Igualdade Racial, com reserva de vagas para negros no ensino superior e no serviço público. 

Por curiosidade, dá uma olhada em quem assinou o tal “Manifesto”. Intelectuais, artistas, ativistas etc. Não preciso dizer que a grande maioria era composta por pessoas brancas! 

A lei de cotas raciais, de iniciativa do senador Paulo Paim, passou. Hoje, além de vagas reservadas para pessoas negras, existe o processo de heteroidentificação para garantir que não haja fraude no acesso. Para evitar que pessoas brancas tentem burlar o sistema, entende? 

Aí a pergunta volta: “Eu sou neguinha?”

Parece-me que Caetano nunca esteve tão certo da sua identidade racial. Do alto dos seus 79 anos de vida, ao ser questionado como se autodeclara, não titubeou ao responder a jornalista Adriana Couto, no programa Roda Viva: “Sou pardo”. Tem até música recente sobre o tema. Em 2020 Caetano compôs a música “Pardo” para a cantora Céu.  

Durante o Roda Viva Caetano deu um show de privilégio branco. Falou que o termo mulato não o incomodava. Disse que seu pai era a pessoa que ele mais admirava e era mulato. Segundo ele, algumas pessoas dizem que a expressão vem das “mulas”, que são o cruzamento entre o jegue e a égua, mas ele não vê nada de mais nisso

Ele pode até não ver nada de mais, mas quem é negro vê, sabe e sente.

Acho que o tal “Manifesto”, escrito e assinado há mais de 15 anos, ainda está vivo, presente na mente e no coração de alguns intelectuais, artistas e ativistas brasileiros.

Ao se definir pardo, Caetano não assume o privilégio que o cerca e o define: a brancura. A morenidade da pele e o pai “mulato” garantem o seu cartão de acesso ao fantástico mundo da democracia racial. Mundo no qual Jorge Mautner, descendente de Austríaco, se torna exemplo de cidadão brasieleiro, defensor da ideologia da mestiçagem, segundo o próprio Caetano.

Bem, se Caetano, Céu e Jorge Mautner são pardos, quem é branco no Brasil?

Assim como Caetano muitos brancos estão presos ao mesmo questionamento, comum a maioria das pessoas mestiças, mas que só elas mesmas podem responder. 

Agora eu pergunto ao Caetano que mora em cada um de vocês: “numa banca de heteroidentificação de concurso público com cotas, como você se declararia?” 

“Eu sou neguinha?”

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