Gramática Estética

Esse texto nasce de uma certa desconfiança, na verdade, surge de uma cisma que não some, então, resolvi materializar o incômodo em texto com o intuito de colocar as ideias para circularem. Pois bem, o que motivou essa escrita foi a leitura de um texto que questionava a precarização do trabalho doméstico, citando como uma das referências o trabalho de um ilustrador branco junto com uma escritora negra. Ambos produziram tiras a respeito dos comportamentos perversos de pessoas brancas (colocadas em lugares de prestígio social) e seus relacionamentos abusivos com as personagens negras (representadas em papéis de subalternidade). Vale lembrar que o objetivo não é fazer uma crítica que desqualifique o trabalho, mas o que este nos possibilita pensar a partir e para além dele. Dessa maneira, o que esse texto vai tentar captar são as “arapucas” (como diz Geni Nuñez) criadas pela branquitude a partir das suas gramáticas estéticas.

Em primeiro lugar, parece razoável pressupor que quando alguém escreve algo e publica, assim o faz com a intenção de que o material seja lido. Dessa forma, o ato de escrita pressupõe uma audiência que vai receber a obra, por consequência, seria interessante as perguntas: a quem se destina, quem é a platéia leitora desse material? Quais concessões são feitas na expectativa de agradar a platéia? Observando o conteúdo, parece que as “tiras de humor ódio, colocam os holofotes posicionados nas personagens brancas, especialmente no relacionamento sádico que estas tecem com as negras, que majoritariamente ocupam lugares de desprestígio social. Outro ponto importante a mencionar são os momentos em que as personagens negras fazem uma espécie de revide aos maus tratos recebidos. Tendo isso em vista, entendi que o objetivo é a comunicação com os públicos negro (que tem alguma ciência do que isto representa nesse país racista) mas, principalmente o branco (também com certa consciência racial). Parto desse entendimento porque as(os) brancas(os) ocupam papéis de centralidade nas narrativas, mesmo que posicionadas(os) no que chamo de polo negativo.

Neste momento, peço licença para abrir uma grande janela e colocar outras informações nesse cenário. Quando o assunto é branquitude, esta se divide principalmente em dois polos: o positivo e o negativo. O primeiro apresenta O Branco (ancorado em uma masculinidade fantasiosa) como “o caminho a verdade e a vida”, a terra prometida, a expressão máxima de beleza e inteligência, o modelo de Humano universal ao qual todo mundo deveria seguir. O segundo é a inversão do primeiro, aqui o branco é quase a personificação do mal e deve ser questionado. Cabe uma observação aqui, como me disse Mayara (minha esposa) citando Harry Potter “o mundo não se divide entre pessoas boas e Comensais da Morte” e dessa forma, duvido que a Branquitude tenha realmente apenas dois lados, creio que esteja mais para uma trama, que apresenta várias camadas entrelaçadas, mas paremos a ressalva por aqui para que a gente não perca o fio condutor desse enredo. O que eu tenho pensado é que tanto o primeiro (polo positivo) quanto o segundo (polo negativo) fazem parte da mesma gramática. Com o perdão da comunidade de letras pela simplificação, entendo essa como um conjunto de regras com duas funções que caminham de mãos dadas: a primeira é condicionar e apontar a maneira correta de se expressar, a segunda eliminar a pluralidade, ambiguidade ou “erro” da comunicação. Partindo daí, de maneira análoga percebo que a Branquitude produz uma espécie de dicionário político (no sentido mais amplo da palavra), cujo conteúdo é um repertório catequizador em que o “verbete” falado, escrito, imaginado e sentido tem de ser branco. E isso independe do polo, tanto positivo, quanto negativo a branquitude se coloca como onipresente, onipotente e onisciente. 

Tendo isso em mente voltemos às tiras. Em primeiro lugar, não me parece, à primeira vista, que colocar personagens brancas exercendo sadismo em relação às negras seja uma novidade. As gramáticas estéticas das nossas novelas, dos filmes nacionais, norte-americanos e europeus fazem isso a muito tempo. Por isso, podemos afirmar com tranquilidade que colocar pessoas brancas e negras congeladas em papéis de superioridade e inferioridade, respectivamente, é uma tecnologia da branquitude passada de geração a geração cujo o intuito é a naturalização dos papéis sociais. Mas, será que é possível a sensibilização da branquitude apenas apontando seus atos violentos? E o DJ que viraliza na internet batendo na sua companheira e depois ganha milhares de seguidores? Somos herdeiros de um país que chama o genocídio europeu de conquista e descobrimento, estupro de mulheres indígenas e negras de miscigenação. Esses elementos nos dão pistas de que nos solidarizamos com o agressor (que é transformado em herói) e condenamos a vítima (transformada em vilã). O perigo de uma gramática única (parafraseando a Chimamanda), ou seja, o vocabulário “esculpido em Carrara” da branquitude, tem como consequência um ambiente de delírio entre pessoas brancas, auto ódio entre nós, pessoas negras, além de nos incentivar a vestir as “máscaras brancas”, certo Fanon?Em segundo lugar, é possível pensar uma crítica para além do vocabulário estético da branquitude? Tendo a acreditar que sim, ao ler, por exemplo, os textos de Conceição Evaristo. O que marca a diferença entre o trabalho dessa autora e o das “tiras de humor ódio, no meu entender, são duas questões: a complexidade e a capacidade de agência das personagens negras. A primeira devolve a humanidade, ou seja, as personagens passam a ter uma história, uma vida onde vários elementos interagem. A segunda, retira as personagens negras da passividade, mesmo em lugares de subalternidade. Ambas estão intrinsecamente ligadas. Quando eu vejo o trabalho do ilustrador e da autora, me pergunto, qual a complexidade e a agência das personagens negras na trama? O que elas fazem além de serem submissas e alvo de agressões gratuitas de personagens brancas? Por outro lado, quando existe uma “reação” negra, esta parece fora da realidade. A nossa história vem mostrando que o medo branco, é uma projeção, ou seja, que nós negras e negros não planejamos vingança, ou o genocídio branco, mas sim a reparação da violência. E essa última pode vir de leque bem amplo de iniciativas. Como a branquitude está muito ocupada querendo ensinar, falar sobre e pelas populações afropindorâmicas, como diria o Nêgo Bispo para se referir aos povos negros e indígenas, aquela perde de vista a sutileza dos movimentos de resistência. Quando as tiras delimitam para as personagens brancas o papel de antagonista, na realidade elas continuam com o protagonismo, só muda o polo. Mas e se a branquitude não fosse nem protagonista, nem antagonista e sim coadjuvante, qual seria a diferença? Ou, para seguir na analogia: e se ao invés de partir da gramática para pensar a língua e partíssemos de como as pessoas se comunicam, qual seria o resultado? Será que teríamos a mesma gramática estética? Falaríamos a mesma língua?

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¹O repertório das sensibilidades

Escrito por Davi Akintolá

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