Começo porque tenho que começar,
Sem saber por onde ou como
Começo
Depois de passar muitas e muitas vezes pelo medo de errar, do “imperfeito”
Ao constatar que, nesse caminho, trupicar, cair, levantar e atropelar são inevitáveis
Depois de criar mil estratégias que me fazem lembrar disso
E de que, mesmo assim, estamos longe de estar “tudo bem”
e mesmo assim é urgente continuar
Que, ainda que estranhamente minha vida possa parecer feliz, preciso constantemente fazer um esforço pra des-amortecer as proteções da minha bolha
essa felicidade não é plena por quê é restritiva
Vai vir fogo,
E pela luta antirracista
vale cada canto de mim em brasa
suar essa escrita é apenas um grão desse processo
Hoje vou contar uma história, num exercício de análise de situações experienciadas coletivamente, em que o racismo é um elemento chave e, como de costume, se expressa de diferentes formas. Esta proposta de trazer histórias vividas surge da experiência com a com as Rodas de Conversa organizadas por três frentes de estudos críticos às branquitudes, desde o verão de 2021. A partir de observação e construção coletiva, a intenção da proposta é de aproximar a discussão dos nossos afetos, tentando enriquecer o que muitas vezes reduz a função da teorização. Através da análise de narrativas pessoais, se aproximar das realidades presentes, provocando os imaginários com uma construção coletiva, que busca ser responsável com o desmantelamentos dos racismos. Em suma, seguimos nas tentativas de acertos, caminhando com desejo de afetação e implicação…
Pois então, seenta que lá vem história. Sabe aquelas cenas da vida que parecem ficar na memória em looping? No momento que ela aconteceu, não tive muita noção do que ela significava. Mas sabia que tinha grandes chances de ter pisado na bola.
Bueno, vamos lá… faço parte de um coletivo de carnaval que a maior parte das pessoas são brancas – o que não é nada surpreendente para uma mina branca pan de classe média como eu. Eu e mais duas mulheres brancas compomos um grupo de trabalho de acolhimento interno deste coletivo. Dentro outros, lidamos com um conflito que, entre muitos marcadores, era um caso de amor interracial e racismo que reverberou em grande parte dos relacionamentos do grande grupo, excluindo e criminalizando uma mulher negra. Enquanto GT, entendemos que uma das nossas contribuições, além do acolhimento da mesma, seria provocar que o grande grupo percebesse suas práticas racistas e refletisse, para que pudesse repensar seus posicionamentos – isso tudo cuidando para que as possíveis exposições não prejudicassem as pessoas envolvidas. Acolhimento amadurecido, entendemos, junto com ela, que era hora de levar algumas questões para a gestão.
Nesse contexto, depois de revoltas das pessoas brancas e outras reverberações no grande grupo, fui trocar uma ideia com uma mina preta que compunha o grupo há mais tempo que eu. Num tom de desabafo, perguntei sobre como lidar com pessoas brancas específicas, porque estava encontrando dificuldades extras. Ela me recomendou, dentre outras coisas, não noiar com bocas tortas e seguir tentando diálogo. Lembro de sentir um incômodo no peito, um cansaço profundo, da minha testa enrugar e meus olhos escorregarem em direção às minhas bochechas, e meu ombros, em direção ao chão. Respirei com pesar e falei, buscando cumplicidade, que eu não sabia se dava conta, que eu não estava encontrando paciência. Ela me olhou no fundo dos olhos e não falou mais nada…
Não sei no que você que lê pensou e sentiu – adorarei saber. Mas, exatamente… eu não tive energia para lidar com o racismo de algumas pessoas brancas do coletivo o qual construo junto. E pergunto: como assim eu não tenho paciência pra isso? Seria isso parte da minha contribuição com a manutenção do racismo, fantasiada de impaciência e cansaço? É cansativo e requer paciência, lidar com racismo, principalmente quando buscamos romper com essa lógica. Parabéns, manô do passado, você descobriu algo real. Mas, principalmente mesmo, é que a parte mais cansativa não fica para nós, pessoas brancas.
Essa cena, que vai completar dois anos, tem rendido aqui dentro. Nunca mais falei com ela, dentre os motivos, por quê nunca mais nos encontramos; por achar que isso é trampo pra mim e não pra ela; por não sermos íntimas o suficiente pra que eu tenha ideia de como ela lidou com isso e se retomar essa cena não significaria um incômodo maior do que já corro o risco de ter provocado nela com meu show de excepcionalidade branca – conceito que vou retomar adiante. Por quê acho que uma das coisas que a gente pode fazer, é ocupar mais vezes esse percurso de olhar pra dentro e pra fora com coragem de se encarar e elaborar as arapucas das nossas branquitudes, implicades em decodificá-las.
É fato que conflitos fazem parte do jogo social, já dizem muites habitantes desse mundão. Não tem jeito… rupturas fazem parte da vida em sociedade que, estou entendendo, está sempre em processo. Mas uma das coisas que tenho refletido e aprendido com pessoas que também estão nesta luta, é que não posso me dar ao luxo da preguiça de me relacionar com pessoas diferentes de mim, como fiz na ocasião da minha história – e também em outros momentos, tenho convicção, risos. Ter e cuidar das nossas bolhas de convívio creio ser essencial pra sobrevivência. Mas restringir todo meu ciclo de relacionamento a elas, enquanto mina branca, me parece sinônimo de sentar no troninho do meu privilégio branco e cruzar os braços enquanto uso camisetas de movimentos sociais – um uso esvaziado de sentido. Se queremos estar aliades nas lutas de combate aos racismos, não podemos nos dar ao luxo de não ser extremamente estrategistas da comunicação. Hoje vejo que o “espírito da excepcionalidade branca” me dominou em vários momentos e não acho que ele seja agregador.
Excepcionalidade Branca é uma ideia apresentada por Layla Saad no livro Eu e a Supremacia Branca: como reconhecer seu privilégio, combater o racismo e mudar o mundo – que não é um livro de respostas e resoluções prontas. Ele fala de um traço da branquitude que vejo muito entre grupos do que vou chamar de branquitude crítica, conceito evocado pelo historiador Lourenço Cardoso. Resumidamente, branquitude crítica seria um grupo heterogêneo de pessoas que não concordam com a existência e propagação do racismo. Ao mesmo tempo, sendo pessoas brancas, corroboram com a manutenção do racismo e dos seus privilégios. Não à toa, vejo mais nesses grupos, mas porque neles que cresci. A excepcionalidade branca, então, segundo Saad, é a crença de que quem detém privilégios brancos está isento dos efeitos, benefícios e condicionamentos da supremacia branca. Esse discurso acaba sendo uma manobra interna que algumas pessoas brancas fazem para justificar a sua falta de engajamento em reconhecer seu racismo, como diz Izabel Accioly. Pois bem, eu já havia adquirido suficiente entendimento de que um tanto rentável de privilégio branco atravessa minha experiência nesse mundão e que, privilégio branco é sinônimo de racismo, como nos ensina tanto Tatiana Nascimento. Ao mesmo tempo, dei alguns tantos sinais de me considerar uma branca menos racista que minhas companheiras de coletivo e isso é extremamente arrogante e ilusório. Isso, creio, afasta o encontro entre pessoas em processo e, por conseguinte, se mostra contraproducente no engajamento de combate a qualquer opressão.
Aí, a gente pode pensar: nossa, mas pera aí! Não complica, olha que da hora! Três pessoas brancas acolhendo uma pessoa preta em um caso de racismo e botando as pessoas brancas pra pensar. Uau, realmente é sobre isso e tá tudo bem! O resto é resto! Minhas esperanças foram recarregadas!
Mas não. Acontece que não fizemos mais do que a nossa responsabilidade, cometendo erros e acertos no caminho. Acho que é mais sobre estarmos em processo, fazendo o máximo possível, ainda que sempre tenha a maior parte por fazer.
Uma das coisas que me ajudou a lidar com meu impulso de excepcionalidade branca, foi passar a perceber a imensidão de complexidade de cada ser humano, inclusive eu(…). Culpa e reparação não parecem caber na mesma ação, no mesmo lugar, como nos traz Tatiana Nascimento, e acho que a presença do que chamei de “espírito da excepcionalidade branca” provoca culpabilização, uma pseudo hierarquia entre pessoas brancas que normalmente estão em posições muito parecidas em relação ao racismo. Cada situação tem um nível de complexidade infinito. Em uma mesma situação, ao mesmo tempo em que podemos estar colaborando com o rompimento de lógicas racistas, podemos estar nos posicionando enquanto racistas. Isso acontece, reitero, porque somos sociedades extremamente complexas, compostas por seres humanos extremamente complexos. Não somos os estereótipos da colonialidade. Pessoas brancas não são heróis honestos e pessoas subjugadas pela lógica colonial não são vilões endiabrados.
Por hora, fico por aqui com minha provocação e sigo em rede para reconstruirmos juntes essas narrativas. Seguindo esse flow, parte da minha tentativa aqui, é de, enquanto pessoas brancas, façamos as pazes com o que vou chamar desse nosso “devir racistinha em reparação” e paremos de negar nossos racismos, para tratar deles com mais honestidade. Reparação não pode ser tratada com a profundidade de uma poça d’água.O que chamei aqui desse tipo de intuição que faz com que algumas cenas fiquem em looping na cabeça pedindo para ser politicamente elaborada, suponho, não deixa a branquitude crítica dormir bem. Não creio que a gente esteja dormindo bem. Creio que, em geral, estamos em negação desse fato e das faces dos nossos racismos. Espero que esse exercício tenha ido além do meu umbigo, para servir ao mundo que queremos. Convido para seguir acompanhando esse MO VI MEN TO… Há braços.
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¹ JornalZine Branquitudes (@jornalzine), Núcleo de Estudos sobre Branquitudes, o NEB (@nebbranquitudes) e Minha Branquitude (@minhabranquitude)
² Lourenço Cardoso traz também o conceito de branquitude acrítica, que seria, resumidamente, aqueles grupos de pessoas que explicitamente promovem racismos. Para saber mais e ter sua própria interpretação desses conceitos, ler Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista Cardoso, L., disponível em art.LourencoCardoso.pdf (clacso.edu.ar). Acesso: 23/07/2021.
³ Achei que o texto ficaria mais longo do que já está falar desse conceito e recomendo a leitura do livro da Layla Saad que citei aqui para compreender mais. E/ou seguir, @afroantropologa, @genipapos.
4 Para entender melhor,assista (11) Festival WOW Online | Território de Partilha: branquitude, gêneros e identidades étnico-raciais – YouTube. Essa fala está a partir do 10º minuto – recomendo com força assistir todo. Acesso em 23/07/2021.
Escrito por Manoela Laitano
Twitter: @ManoelaLaitano
Instagram: @ma.n.o.l.a