A troca

Acordar cedo nunca foi um problema, há tempos fazia parte de seu cotidiano, na verdade, não se lembrava da última vez que conseguiu dormir até mais tarde, talvez quando ainda era criança, tão pequeno que não poderia ajudar nas tarefas de casa, mas isso era passado, e deixemos o passado para quem pode viver dele. Às seis horas da manhã já estava pronto para caminhar pelas ondas brancas e pretas que o acompanhavam em sua luta diária, desde que havia chegado ao Brasil com sua mãe e seu irmão.


Nunca se esquecera do primeiro livro que recebeu, foi um presente de um velho galanteador que morava ao lado de sua casa e que, à noite, ajudava sua mãe com as compras e logo cedo ajudava ele e seu irmão com o café. “A barganha” de Lima Barreto, e foi lendo aquele pequeno conto que sua paixão por livros e por histórias teve início.


Chinelo de dedo, camisa do Flamengo, bermuda preta com listras brancas, já não tinha mais amarras, e uma sunga por baixo para que nos dias de solidão ou de grande alegria fizesse visita a rainha do mar. Ia na companhia de Maria Firmina dos Reis, Maria Carolina de Jesus, Ana Maria Gonçalves entre tantas e tantos outros. Ia também acompanhado de sua timidez, que Deus lhe havia dado como prova de amor. Sua parada fica entre a Vinicius e a praça Manoel Campos da Paz, mas ele a chamava de praça João Pedro¹, acreditando que os nomes tinham poder e que poderiam aproximar ou afastar o povo dali.


As pessoas passavam e se interessavam por aquele tipo diferente que havia pelas redondezas, com uma carriola empilhada de livros, expostos com tamanha delicadeza em cima de uma toalha preta que de tão bonita poderia
acompanhar uma ceia na virada de ano. O cuidado com os livros era de dar gosto em quem pode e compreende o poder das palavras.


Uma senhora, vestindo roupas monocromáticas em tom amarelo e um cabelo espetado, vai rumo ao ambulante curiosa.
— Olá, posso dar uma olhada nos livros?
— Sim senhora, fique à vontade.
— Que livros você tem?
— Muitos, repletos das mais variadas histórias.
— Quanto é esse aqui? perguntou, pegando “Olhos d’agua” de Conceição Evaristo.
— Esse é barato e está novinho, 20 reais.
— Xii, meu Deus! Que caro hein, um novo custa 30.


O pobre ambulante não fazia negócio algum e continuava com a sua carga sagrada intocada, ocupando aquelas belas ruas da costa sul do Rio de Janeiro.


“Livros! De todos os tipos e para todas as idades” — escreveu em uma pequena lousa, que havia encontrado certo dia em uma caçamba, após uma visita à sua rainha quando voltava para casa.


Foi ao ler tais palavras que um petulante senhor foi até ele. Vestia uma roupa apertada, daquelas que deixam os músculos e o coração rígidos, um chapéu de lado e um ar autoritário, como se caminhasse ao lado das verdades.
— O que você está fazendo aqui?
— São livros, meu senhor.
— E você tem autorização para exercer essa tarefa?
— Não senhor, mas eu não sabia que era preciso autorização para vender livros.


A conversa não parecia caminhar para o lado do pobre ambulante, mas Deus ajuda quem cedo madruga. E não demorou para que viesse se juntar a ele uma companheira, Dona Italiana que fazia negócios em uma barraca quando viu de longe a conversa que acontecia. Ela vendia cadernos, cadernos feito à mão, bordando durante o dia o que havia imaginado durante a noite, e exibia seus talentos acompanhada de uma grande mesa e de sua lábia, que havia recebido como prova do amor de Deus. Estava suada, afinal era verão no Rio de Janeiro.


— Pois saiba senhor, que meu amigo troca livros e para trocar mercadorias não é necessário autorização senhor, pode olhar na caderneta de estabelecimentos (inventando um nome qualquer que lhe ocorreu).
— É verdade o que essa senhora diz?
— Sim, sim, claro, responde o ambulante.
— Pois saiba que além de autorização, vender livros é falta de respeito, pois conhecimento deve ser ofertado para todos, inclusive para quem não pode comprar.
— Sim, claro, respondeu a senhora, e continuou — mas saiba senhor que sua missão é quase divina, pois ajuda velhas senhoras como eu, que já não podem viver suas aventuras, mas se deliciam ao ler aventuras de outras pessoas, realizando uma troca que seja boa para os dois ou mais lados.


O senhor vai embora com cara de desconfiado, como se alguma coisa tivesse evitado que ele realizasse o seu trabalho, mas não sabia bem o quê. Não fica contente, mas segue seu rumo em busca de novos infratores.


A senhora sorri para o ambulante, que pensa: — Por que essa senhora sorri para mim? Como essa senhora pode estar contente trabalhando nesse sol quente? Por que ela veio me ajudar? e então responde:
— Obrigado senhora pela ajuda.
A senhora observa o ambulante de cima a baixo e diz:
— Sem essa de senhora, cá entre nós, deixemos isso de senhor e senhora para os doutores, não para nós que suamos com o sol quente.


E emendou apontando com os braços:
— Sente-se aqui, vamos prosear um pouquinho enquanto bebemos um café.
— Não quero atrapalhar, não, e preciso vender algum livro ainda hoje. Ops, desculpe, preciso trocar esses livros por dinheiro ou por comida ainda hoje, respondeu o ambulante com um tímido sorriso entre os rostos.


Dona Italiana continua:
— Pois deixe os livros à mostra, ao lado de meus cadernos, que enquanto bebemos esse café, os livros e os cadernos vão se vender sozinhos.
Ao receber tais palavras, o ambulante tem uma ideia.
— Como você se chama?, pergunta Dona Italiana para o ambulante.
— Me chamo, João Manoel² e a senhora?
— Me chamo Cecília, mas pode me chamar de Dona Italiana, e sem essa de senhora.


João Manoel então conta para Dona Italiana sobre a sua ideia e faz com que a velha italiana se sinta contente. Há muito ela se sentia sozinha e já não tinha as forças necessárias para carregar todos seus cadernos, uma parceria seria muito bem vinda, além do que vender livros ao lado de cadernos fazia muito sentido para ela.


João Manoel não mais precisaria andar pelas ruas acompanhado de sua carriola e de seus livros, agora haveria um lugar ao lado dos cadernos de dona Italiana para que os trocasse. Dona italiana, além de ajudar João Manoel com as vendas, ensinaria ele a bordar cadernos.


Certo dia, aconteceu algo que deixou João Manoel muito encucado. Uma senhora se aproxima de sua nova barraca, mas quem vai em seu rumo é Dona Italiana. A senhora não vê João Manoel, mas João Manoel a reconhece. Não são muitas as pessoas que tem elegância e disposição para andar com roupas num só tom pelas ruas do Rio de Janeiro.
— Que bonito esses cadernos, posso dar uma olhada?
— Claro, fique à vontade, responde Dona Italiana — e, inclusive, estamos com uma promoção, onde se compra um caderno e se leva um livro por apenas 20 reais.
— Ah, que legal, diz a senhora, agora olhando também para os livros ao lado.


A senhora pega um caderno e começa a olhar para os livros que agora não estão mais empilhados, mas sim enfileirados em cima da mesma toalha preta que carregava aquelas histórias. Ela fita “Olhos d’agua” de Conceição Evaristo e o pega com surpresa.
— Aqui senhora, vou levar esses dois, dizendo para Dona Italiana.
— Ah, que boas escolhas. Embrulho para presente?
— Não precisa, são para mim mesma. Um pequeno presente que quero me dar.
— Ah sim, se presentear é uma ótima coisa para os dias de hoje.


A senhora vai embora com o livro, um caderno e a certeza de ter ajudado um alguém e de ter se presenteado com uma história que lhe faria uma pessoa melhor.

¹João Pedro é referência ao menino de 14 anos assassinado em sua casa no Complexo do Salgueiro em 2020.

²João Manoel é referência ao Angolano assassinado por ataque xenófobo e racista ocorrido na Zona Leste de São Paulo em 2020.

Escrito por Edgar Bendahan

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